I
O HOMEM QUE SABIA DE
MENOS
O silêncio mórbido
enlaçava-me calmamente. Sem pressa alguma tomava conta de meus pensamentos e
adentrava minha alma; sutil e insidiosamente assenhoreava-se de minha carne,
mortificando-a, e me fazia sentir quase tão vazio e sem vida quanto ele
próprio. Um chão retilíneo, de um branco marmóreo e límpido estendia-se como um
tapete refletindo a luz que emanava por todos os lados. Ubíqua, não se
distinguia dela começo nem fim - tampouco teto de espécie alguma que a
filtrasse. Ela apenas estava ali: plena e dominante. Até onde a vista alcançava
também não se distinguia paredes que delimitassem a extensão do piso e a luz
parecia fluir livremente. Eu estava naquele Grande Salão sem saber ao certo o
que fazia ali; certo somente de estar totalmente entorpecido por efeito daquele
lugar. Sentado, pernas junto ao peito, braços enlaçando-as, cabeça enfiada
entre os joelhos tentando descansar um pouco a vista de toda aquela
luminosidade – refletia sobre milhares de coisas e nada ao mesmo tempo, à mercê
do fluxo desordenado dos meus pensamentos. Nada me ocorria. Por mais que me
esforçasse lembrava-me apenas daquilo, daquele imenso e vazio local. Senti um
vento forte soprar pelo meu corpo nu, arrepiando-o todo. Mas não era um arrepio
comum, como de quem tirita de frio, não vinha da pele ou dos ossos: vinha da
alma. O que senti, na verdade, foi um terrífico e denso calafrio. O vento, apesar
de soprar com força, não emitia som algum, mas ainda não era isso que me incomodava.
Tinha uma vívida impressão de que o Grande Salão parecia flutuar não somente no
espaço como também no tempo. E não fosse sua suposta infinitude e a luz incessante
a brilhar, teria a certeza de estar encerrado em meu túmulo.
Não
saberia precisar quanto tempo havia se passado desde que me apanhei ali naquele
lugar. Não saberia mesmo precisar se havia se passado algum tempo. O que sabia
era que estava já enfadado - e temeroso. Quando sairia dali? Constantemente olhava
para os lados e para cima semicerrando os olhos pelo efeito da forte luz,
buscando algum sinal de mudança - mas nada, apenas o vácuo. O silêncio já não
me entorpecia apenas, começava também a minar minha vontade de resistir ao seu
enlace. Meus olhos pareciam não ter mais forças para se abrir quando meus
braços soltaram-se das pernas sem que eu pudesse sequer esboçar resistência e
desabei no chão. Aspirava com dificuldade o ar que parecia se tornar rarefeito.
Sentia meu corpo se contorcer em pequenos espasmos que iam ficando cada vez
mais fortes e freqüentes, me impedindo de levantar. Dedos se retraindo, os
músculos se retesando em cãibras. Abri minha boca na vã tentativa de gritar por
socorro; porém, mesmo que minha voz tivesse forças para sair, quem haveria de
me socorrer naquele lugar límbico? Minha visão começou a escurecer. Agora
desejava ver a luz que tanto me incomodara a pouco, mas quase não conseguia
mais fazê-lo. Não tinha mais coordenação sequer para engolir minha saliva e a
sentia escorrer gélida e viscosa pelo canto dos lábios – queria limpá-la e não
podia. Teria sido envenenado? Agonizava temendo não tanto pelo fim que se
aproximava – este poderia ser o verdadeiro e definitivo alívio daquele
pesadelo(?) -, mas pela forma como ele estava vindo: um algoz sádico e
impiedoso, meticuloso e paciente em sua arte. Eu buscava – não sei se em mim ou
nalguma instância superior – um alívio rápido para aquela pantomima silenciosa
e macabra onde meu corpo involuntariamente bailava para deleite de sua
interativa espectadora; músculos moribundos e uma dor cruciante respondiam em
uníssono ao coro da Morte, totalmente afinados com sua lúgubre melodia; prestes
a me colocar às portas de se tornar seu eterno amante, alheio e indiferente ao
desejo quase tímido de viver que insistia em existir dentro de mim.
Ainda podia flertar
com os últimos lampejos de consciência que iam sendo tragados definitivamente
para os calabouços do esquecimento quando um barulho longínquo chegou aos meus
ouvidos: primeiro um som abafado lembrou-me o barulho de um martelo batendo
contra qualquer coisa de metal, mas o som foi aumentando e percebi que não era um
martelo. O barulho crescia, aproximando-se. Era um barulho mecânico, mas não
estático, certamente. Comecei a sentir o solo reverberar; fraco de início,
porém a reverberação também ia aumentando. A curiosidade aguçou-me não apenas
os sentidos que despertaram de sua letargia como minha força de vontade que
começou a dar sinais de recuperação. Senti minhas forças como que voltando de
um escuro e profundo poço; preenchendo e agarrando-se a cada músculo e vértebra
avivando minha alma subitamente. Ergui-me aspirando com força o ar que até há pouco
me faltara quase que por inteiro; olhos estatelados, cegos pela súbita
luminosidade que voltara a penetrar-lhes. Gritei com todas as forças na
tentativa de expulsar os últimos resquícios daquela sensação fúnebre que até
então me domara como seu escravo impotente. Esfregava as mãos freneticamente
nos cabelos como se quisesse expulsar demônios de dentro de minha mente e
colocar a razão de volta ao seu lugar. Cambaleante, ergui-me procurando
inutilmente algum lugar para me apoiar; o barulho aumentava, sentia o chão todo
vibrar fortemente como num terremoto. A impressão que tive era de que tudo iria
desabar e me sentia desorientado em meio a toda aquela balbúrdia que não sabia
ao certo de onde vinha. Agora o barulho que se aproximava me parecia o de uma
locomotiva e o que parecia ser o resfolegar forte da máquina recrudescia. Vinha como um enfurecido touro mecânico,
rasgando o solo por baixo do piso, abrindo caminho para que em sua fúria
pudesse chegar até mim. Eu sentia como se ela viesse com o intuito de me
devorar. O barulho foi aumentando e se aproximando – e então diminuiu. Seu
resfolegar foi cessando, as trepidações também, um apito soou forte e alto,
então tudo voltou ao silêncio costumeiro. Fiquei olhando atônito para o chão
tentando entender o que estava acontecendo. Minhas idéias estavam embaralhadas,
tentava colocá-las em ordem sem muito sucesso. Passou-se algum tempo durante o
qual permaneci atordoado e absorto até que algumas pancadas sob o chão me
despertaram. Olhei assustado na direção delas. Elas não paravam e do local de
onde elas vinham tive a impressão de ver o chão mexer-se. Reparei então que
havia um quadrado recortado no chão e conforme o que estava por baixo batia,
ele soerguia-se levemente, pois parecia muito pesado. Aproximei-me com cautela,
porém decidido a descobrir o que estava acontecendo ali.
As batidas continuavam e uma voz abafada subia
através do chão. Tomando coragem me aproximei e com dificuldade enfiei meus
dedos através de um vão que se mostrava no recorte. Enterrei-os fundo,
forçando-os a entrarem naquele apertado espaço e então pude perceber que se
tratava de uma tampa. Prendi firmemente os dedos puxando com grande esforço
para cima jogando-a para o outro lado e deixando um buraco descoberto de onde
uma nuvem de poeira e fumaça se levantou. Olhei intrigado para dentro daquele
buraco escuro e a princípio não conseguia enxergar nada. Mas a fumaça começou a
se dissipar e breve pude discernir algo que se movia incessantemente: era a
ponta de uma bengala. A pessoa que a segurava a brandia furiosamente e emitia
uma série de grunhidos que demonstravam sério descontentamento com algo. Logo a
bengala sumiu na escuridão e ouvi os passos apressados de alguém andando sobre
a estrutura de metal da máquina e, instantes após, uma escada bateu com força
na beira da abertura. Um barulho de madeira rangendo e os mesmos grunhidos
ranzinzas denunciaram que alguém subia por ela e, finalmente, emergiu entre
teias de aranha e poeira a ponta de um chapéu de coco seguida pelo rosto
rechonchudo e também empoeirado de um estranho senhor. Sua curiosa figura,
vestida ao estilo vitoriano usava um bigode, chapéu e paletó. Um monóculo
enganchado no olho esquerdo completava seu peculiar figurino. Todo empoeirado,
com teias de aranha grudadas pelo chapéu, rosto e paletó. Dependurou-se na
beirada do buraco, limpando rosto e roupas das teias e da poeira, tirou o
chapéu em sinal de saudação e disparou:
- Bom dia!
Por que tal demora em abrir o alçapão?
Eu não sabia
o que responder e tentei balbuciar alguma resposta, mas logo fui cortado.
- Bem, isso
agora não vem ao caso. Da próxima vez me faça o favor de ser presto, pois o
tempo urge e sempre ando atrasado, disse.
“Ser
presto...”? “Urge...”? Pensei. Mas que raios de linguagem seria aquela?
- Atrasado
para...? Perguntei eu que já começava a encaixar meus miolos no lugar.
- Para quê
não lhe interessa - me respondeu ele grosseiramente. O que importa é que sua
encomenda está aqui.
- Minha
encomenda? Mas não encomendei nada! respondi surpreso.
- O endereço
é o seu, e só há o senhor aqui.
- Sim, mas...
- Por favor!
Nada de “mas”, me pediram pra lhe entregar sua encomenda e eu a trouxe. Daqui para
frente é contigo. Apenas pegue-a, por favor.
Teria eu um
endereço naquele local? E dizendo isto
sumiu buraco adentro de onde voltou, segundos depois, com a moldura de um
quadro em mãos.
- Aqui está,
pegue-a, é sua!
Estava
atônito novamente. Do nada me aparecera aquele estranho senhor, com o
estrepitoso barulho e força de uma máquina subterrânea trazendo uma moldura a
qual me entregava como sendo algo que eu há muito esperava, mas da qual eu não
fazia idéia do motivo pelo qual ela estava em minhas mãos.
- Vamos,
vamos! Gritou ele novamente. Não tenho o dia inteiro. Já lhe disse que estou
atrasado. E empurrava a moldura em minha direção me cutucando a barriga com
ela.
Diante disso
segurei a moldura mecanicamente e fiquei olhando para ele sem saber o que
dizer.
- Muito
obrigado, me disse ele num tom irônico e ao mesmo tempo aliviado. Tenha uma boa
sorte e faça um bom proveito de sua moldura.
Tirou novamente o chapéu se despedindo e já ia
escorregando de volta pela escada quando larguei a moldura no chão e
rapidamente o segurei pelos ombros de seu paletó. Ele começou a se debater em
franco desespero enquanto gritava a plenos pulmões:
- Solte-me!
Seu doidivanas! Preciso ir! Largue-me, largue-me!
- Me
responda antes quem o enviou e quem enviou esta moldura, lhe disse.
- Não posso,
pois não sei. Nunca me é dito nome de
quem envia a encomenda e por que sou enviado. Agora por favor, me deixe ir!
- Me diga ao
menos quem é você - pedi esperançoso.
- Eu, meu
caro amigo - me respondeu ele acalmando-se e me encarando firmemente nos olhos
com uma frieza de olhar e expressão a qual até então eu julgara impossível
naquela histriônica figura -, sou um personagem. Porém um personagem que jamais
foi criado apenas imaginado por breves segundos na mente de meu criador. E
então, como eu vivia me atrasando, ele associou minha figura a de um maldito
coelho que é símbolo de rapidez! E eis que jamais saí de sua mente para o papel
e de mim jamais se lembrou ele novamente, ficando o coelho com meu lugar em seu
livro. Porém, aqui estou. Agora, se fizer o obséquio de me soltar, preciso
realmente ir. E dizendo isso chacoalhou o ombro para se soltar e ainda me
encarando desapareceu na escuridão do buraco.
- Não se
esqueça de fechar o buraco antes que nós partamos, ou se arrependerá! Berrou
ele lá de dentro. E então tudo silenciou novamente. Rapidamente e com grande
esforço arrastei a pedra, jogando-a novamente em seu lugar, onde caiu emitindo
um barulho fofo ao se encaixar na abertura.
Por algum
tempo o silêncio ainda imperou por todo o salão até que ouvi o apito soar
novamente e então o barulho de um motor a ligar. O resfolegar da máquina fez-se
ouvir e logo a vibração de seu corpo em movimento pôde ser sentida por todo o
piso. O apito soou mais três vezes, seguidamente, a força do motor aumentou e
rapidamente seu barulho sumiu de meus ouvidos.
Sozinho, novamente, olhei para a moldura
largada no chão e peguei-a. Era uma moldura bela, entalhada com volteios e flores
em madeira nobre. Grande, deveria medir por volta de um metro e setenta de
altura por um metro de largura. Pintada em dourado percebia-se que não fora bem
cuidada, além da pintura estar extremamente desgastada, estava toda machucada
por ranhuras que em muitos lugares haviam arrancado grandes lascas. Dela
pendiam presos pedaços de tela rasgados denunciando que a pintura que um dia
ali existira fora arrancada com grande violência.
Desconcertado com aquela situação atípica,
e com a moldura velha e quebrada que me haviam mandado de presente resolvi
largá-la novamente no chão para descansar um pouco e poder refletir sobre tudo
aquilo. Porém, ao tentar soltá-la, meus dedos não se desgrudaram. Não era
possível! - pensei eu. Tentei novamente abrir minhas mãos e nada: meus dedos
pareciam colados à moldura. Um desespero tomou conta de mim e comecei a
chacoalhá-la violentamente na tentativa de me livrar dela. Agitei-a de um lado
para o outro, coloquei-a no chão e pisei em cima puxando minhas mãos e
machucando meus dedos na malfadada tentativa - e nada da moldura desgrudar.
Após alguns minutos de infrutífera luta, deixei-me cair desolado no chão com a
moldura ainda presa. Tentava imaginar alguma forma de soltar minhas mãos daquela
maldita moldura sem arrancar meus braços e mãos junto quando ela subitamente
desgrudou-se e como que puxada por uma força invisível saiu rolando e batendo
contra o chão para longe de mim até que, ao quase sumir de minha vista, parou
suspensa no ar, flutuando. Não era possível. Aquilo não podia realmente estar
acontecendo. Até onde minha razão e lógica alcançavam nada daquilo tudo era
meramente crível. Eu tinha que descobrir o que ocorria.
Foi quando me
levantei e, num lance, me joguei numa corrida desenfreada rumo á moldura: ela
não iria escapar de mim daquela maneira! Tentaria pegá-la de surpresa. Minhas pernas já
estavam bambas de tanto correr e meu fôlego faltava quando finalmente a
alcancei. Ela estava bem mais longe do que parecia à primeira vista. Talvez
tudo naquele lugar estivesse mais longe de mim do que parecia à primeira vista.
Recuperando o fôlego olhei para a moldura e notei que os pedaços de tela
rasgada começavam a se mover. Não, não era impressão minha. Os pedaços de tela
não só estavam se movendo como pareciam crescer e mover-se num sentido bem
definido uns em busca dos outros. Os pedaços mexiam-se como serpentes famintas;
estendendo-se, alargando-se, unindo-se e formando aos poucos uma só tela.
Resquícios de cores que ainda restavam na tela começaram a se revolver, também
crescendo, espalhando-se nela, criando novas cores e sombras e tomando forma.
Em segundos toda aquela movimentação de cores e tintas criou um rosto muito bem
definido nela: o meu.
Estarrecido
olhei para aquela pintura que surgiu sem atinar para a razão daquilo tudo.
Apoiei-me na moldura perscrutando todos os detalhes do rosto que surgira da
pintura. Olhei seus cabelos desgrenhados, seu nariz protuberante, os lábios
finos e sarcásticos. Seu olhar assustado e perdido em algo misterioso até para
mim emprestava àqueles olhos um desespero que jamais fora dele. Que não podia ser dele. Então a ouvi.
Seus lábios movimentaram-se na tela e a voz ecoou salão afora:
- Somos
prisioneiros de nós mesmos, condenados à prisão perpétua por culpa de nossa
própria fragilidade!
Aquela frase foi como
um soco direto no nariz. Meus sentidos turvaram-se imediatamente e tombei zonzo
em direção à moldura. Ao tentar me apoiar nela para não cair, senti uma força
indefinida me puxar fortemente em sua direção. Meu rosto afundou-se na
tela, seguido de todo o meu corpo. E então, novamente, apenas o silêncio e, com ele, a
escuridão.
To be continued...