segunda-feira, 14 de maio de 2012

Nota Póstuma


Já mui velho, faleceu
o tal Seguro
sem herança
que não fosse a do fiar
todas as dores e esperanças
deste mundo
que em suas barbas
se enrolavam a descansar.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

( THÝO )



Já andei por muitos anos.
E vivem neles tão sutis,
meus desejos que,
insanos,
insistem em resistir.

Contei várias derrotas:
em dedos não caberiam
Somadas a parcas vitórias;
Um cabedal de ironias.


Como nascem sol e lua
Fluem rios; brame o mar
Moedas nos olhos,
avante, Caronte!
Vou onde intentas me levar

Cálido Hades, cure com fogo
As mazelas deste Altar
E que ventos, vigorosos
Soçobrem as marés do azar!






quinta-feira, 5 de abril de 2012

Estilhaços

Teu olhar ensina
o que o grito mudo
dos teus lábios cala
Miríades de vozes: díspares
Ao que nada se entende
Meu mundo desaba


Revolvo-me entre sonhos alquebrados
Pelo forte
Forte espasmo da Agonia
Não resta história, resquício
o menor rastro
E em desatino desafino esta Elegia


E quando pensas
que minha vontade deita
plácida
Como em seio de Madonna
a dormitar
Recalcitrante, de meu leito, me arvoro:


"Grava-me em teus olhos enquanto corro;
  poderei jamais retornar"

terça-feira, 6 de março de 2012

Epitáfio

Hoje pela manhã,
minha poesia me assassinou.
Sem projéteis ou facas,
Motivos ou avisos.
Simplesmente me assassinou.

Ela me assassinou.
E já não encontro razões
pra navegar à deriva,
comemorar os meus dias;
ou refazer-me da dor.

Minha poesia me assassinou.
Sem cúmplices ou testemunhas.
Seu crime perfeito me prostra
meu sangue é a sua resposta
numa carta que Ela deixou.




segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

CRISIS MIDNIGHT CLUB



I

O HOMEM QUE SABIA DE MENOS

 O silêncio mórbido enlaçava-me calmamente. Sem pressa alguma tomava conta de meus pensamentos e adentrava minha alma; sutil e insidiosamente assenhoreava-se de minha carne, mortificando-a, e me fazia sentir quase tão vazio e sem vida quanto ele próprio. Um chão retilíneo, de um branco marmóreo e límpido estendia-se como um tapete refletindo a luz que emanava por todos os lados. Ubíqua, não se distinguia dela começo nem fim - tampouco teto de espécie alguma que a filtrasse. Ela apenas estava ali: plena e dominante. Até onde a vista alcançava também não se distinguia paredes que delimitassem a extensão do piso e a luz parecia fluir livremente. Eu estava naquele Grande Salão sem saber ao certo o que fazia ali; certo somente de estar totalmente entorpecido por efeito daquele lugar. Sentado, pernas junto ao peito, braços enlaçando-as, cabeça enfiada entre os joelhos tentando descansar um pouco a vista de toda aquela luminosidade – refletia sobre milhares de coisas e nada ao mesmo tempo, à mercê do fluxo desordenado dos meus pensamentos. Nada me ocorria. Por mais que me esforçasse lembrava-me apenas daquilo, daquele imenso e vazio local. Senti um vento forte soprar pelo meu corpo nu, arrepiando-o todo. Mas não era um arrepio comum, como de quem tirita de frio, não vinha da pele ou dos ossos: vinha da alma. O que senti, na verdade, foi um terrífico e denso calafrio. O vento, apesar de soprar com força, não emitia som algum, mas ainda não era isso que me incomodava. Tinha uma vívida impressão de que o Grande Salão parecia flutuar não somente no espaço como também no tempo. E não fosse sua suposta infinitude e a luz incessante a brilhar, teria a certeza de estar encerrado em meu túmulo. 

  Não saberia precisar quanto tempo havia se passado desde que me apanhei ali naquele lugar. Não saberia mesmo precisar se havia se passado algum tempo. O que sabia era que estava já enfadado - e temeroso. Quando sairia dali? Constantemente olhava para os lados e para cima semicerrando os olhos pelo efeito da forte luz, buscando algum sinal de mudança - mas nada, apenas o vácuo. O silêncio já não me entorpecia apenas, começava também a minar minha vontade de resistir ao seu enlace. Meus olhos pareciam não ter mais forças para se abrir quando meus braços soltaram-se das pernas sem que eu pudesse sequer esboçar resistência e desabei no chão. Aspirava com dificuldade o ar que parecia se tornar rarefeito. Sentia meu corpo se contorcer em pequenos espasmos que iam ficando cada vez mais fortes e freqüentes, me impedindo de levantar. Dedos se retraindo, os músculos se retesando em cãibras. Abri minha boca na vã tentativa de gritar por socorro; porém, mesmo que minha voz tivesse forças para sair, quem haveria de me socorrer naquele lugar límbico? Minha visão começou a escurecer. Agora desejava ver a luz que tanto me incomodara a pouco, mas quase não conseguia mais fazê-lo. Não tinha mais coordenação sequer para engolir minha saliva e a sentia escorrer gélida e viscosa pelo canto dos lábios – queria limpá-la e não podia. Teria sido envenenado? Agonizava temendo não tanto pelo fim que se aproximava – este poderia ser o verdadeiro e definitivo alívio daquele pesadelo(?) -, mas pela forma como ele estava vindo: um algoz sádico e impiedoso, meticuloso e paciente em sua arte. Eu buscava – não sei se em mim ou nalguma instância superior – um alívio rápido para aquela pantomima silenciosa e macabra onde meu corpo involuntariamente bailava para deleite de sua interativa espectadora; músculos moribundos e uma dor cruciante respondiam em uníssono ao coro da Morte, totalmente afinados com sua lúgubre melodia; prestes a me colocar às portas de se tornar seu eterno amante, alheio e indiferente ao desejo quase tímido de viver que insistia em existir dentro de mim.

Ainda podia flertar com os últimos lampejos de consciência que iam sendo tragados definitivamente para os calabouços do esquecimento quando um barulho longínquo chegou aos meus ouvidos: primeiro um som abafado lembrou-me o barulho de um martelo batendo contra qualquer coisa de metal, mas o som foi aumentando e percebi que não era um martelo. O barulho crescia, aproximando-se. Era um barulho mecânico, mas não estático, certamente. Comecei a sentir o solo reverberar; fraco de início, porém a reverberação também ia aumentando. A curiosidade aguçou-me não apenas os sentidos que despertaram de sua letargia como minha força de vontade que começou a dar sinais de recuperação. Senti minhas forças como que voltando de um escuro e profundo poço; preenchendo e agarrando-se a cada músculo e vértebra avivando minha alma subitamente. Ergui-me aspirando com força o ar que até há pouco me faltara quase que por inteiro; olhos estatelados, cegos pela súbita luminosidade que voltara a penetrar-lhes. Gritei com todas as forças na tentativa de expulsar os últimos resquícios daquela sensação fúnebre que até então me domara como seu escravo impotente. Esfregava as mãos freneticamente nos cabelos como se quisesse expulsar demônios de dentro de minha mente e colocar a razão de volta ao seu lugar. Cambaleante, ergui-me procurando inutilmente algum lugar para me apoiar; o barulho aumentava, sentia o chão todo vibrar fortemente como num terremoto. A impressão que tive era de que tudo iria desabar e me sentia desorientado em meio a toda aquela balbúrdia que não sabia ao certo de onde vinha. Agora o barulho que se aproximava me parecia o de uma locomotiva e o que parecia ser o resfolegar forte da máquina recrudescia.  Vinha como um enfurecido touro mecânico, rasgando o solo por baixo do piso, abrindo caminho para que em sua fúria pudesse chegar até mim. Eu sentia como se ela viesse com o intuito de me devorar. O barulho foi aumentando e se aproximando – e então diminuiu. Seu resfolegar foi cessando, as trepidações também, um apito soou forte e alto, então tudo voltou ao silêncio costumeiro. Fiquei olhando atônito para o chão tentando entender o que estava acontecendo. Minhas idéias estavam embaralhadas, tentava colocá-las em ordem sem muito sucesso. Passou-se algum tempo durante o qual permaneci atordoado e absorto até que algumas pancadas sob o chão me despertaram. Olhei assustado na direção delas. Elas não paravam e do local de onde elas vinham tive a impressão de ver o chão mexer-se. Reparei então que havia um quadrado recortado no chão e conforme o que estava por baixo batia, ele soerguia-se levemente, pois parecia muito pesado. Aproximei-me com cautela, porém decidido a descobrir o que estava acontecendo ali. 

 As batidas continuavam e uma voz abafada subia através do chão. Tomando coragem me aproximei e com dificuldade enfiei meus dedos através de um vão que se mostrava no recorte. Enterrei-os fundo, forçando-os a entrarem naquele apertado espaço e então pude perceber que se tratava de uma tampa. Prendi firmemente os dedos puxando com grande esforço para cima jogando-a para o outro lado e deixando um buraco descoberto de onde uma nuvem de poeira e fumaça se levantou. Olhei intrigado para dentro daquele buraco escuro e a princípio não conseguia enxergar nada. Mas a fumaça começou a se dissipar e breve pude discernir algo que se movia incessantemente: era a ponta de uma bengala. A pessoa que a segurava a brandia furiosamente e emitia uma série de grunhidos que demonstravam sério descontentamento com algo. Logo a bengala sumiu na escuridão e ouvi os passos apressados de alguém andando sobre a estrutura de metal da máquina e, instantes após, uma escada bateu com força na beira da abertura. Um barulho de madeira rangendo e os mesmos grunhidos ranzinzas denunciaram que alguém subia por ela e, finalmente, emergiu entre teias de aranha e poeira a ponta de um chapéu de coco seguida pelo rosto rechonchudo e também empoeirado de um estranho senhor. Sua curiosa figura, vestida ao estilo vitoriano usava um bigode, chapéu e paletó. Um monóculo enganchado no olho esquerdo completava seu peculiar figurino. Todo empoeirado, com teias de aranha grudadas pelo chapéu, rosto e paletó. Dependurou-se na beirada do buraco, limpando rosto e roupas das teias e da poeira, tirou o chapéu em sinal de saudação e disparou:
- Bom dia! Por que tal demora em abrir o alçapão?
Eu não sabia o que responder e tentei balbuciar alguma resposta, mas logo fui cortado.
- Bem, isso agora não vem ao caso. Da próxima vez me faça o favor de ser presto, pois o tempo urge e sempre ando atrasado, disse.
“Ser presto...”? “Urge...”? Pensei. Mas que raios de linguagem seria aquela?
- Atrasado para...? Perguntei eu que já começava a encaixar meus miolos no lugar.
- Para quê não lhe interessa - me respondeu ele grosseiramente. O que importa é que sua encomenda está aqui.
- Minha encomenda? Mas não encomendei nada! respondi surpreso.
- O endereço é o seu, e só há o senhor aqui.
- Sim, mas...
- Por favor! Nada de “mas”, me pediram pra lhe entregar sua encomenda e eu a trouxe. Daqui para frente é contigo. Apenas pegue-a, por favor.
Teria eu um endereço naquele local?  E dizendo isto sumiu buraco adentro de onde voltou, segundos depois, com a moldura de um quadro em mãos.
- Aqui está, pegue-a, é sua!
Estava atônito novamente. Do nada me aparecera aquele estranho senhor, com o estrepitoso barulho e força de uma máquina subterrânea trazendo uma moldura a qual me entregava como sendo algo que eu há muito esperava, mas da qual eu não fazia idéia do motivo pelo qual ela estava em minhas mãos.
- Vamos, vamos! Gritou ele novamente. Não tenho o dia inteiro. Já lhe disse que estou atrasado. E empurrava a moldura em minha direção me cutucando a barriga com ela.
Diante disso segurei a moldura mecanicamente e fiquei olhando para ele sem saber o que dizer.
- Muito obrigado, me disse ele num tom irônico e ao mesmo tempo aliviado. Tenha uma boa sorte e faça um bom proveito de sua moldura.
 Tirou novamente o chapéu se despedindo e já ia escorregando de volta pela escada quando larguei a moldura no chão e rapidamente o segurei pelos ombros de seu paletó. Ele começou a se debater em franco desespero enquanto gritava a plenos pulmões:
- Solte-me! Seu doidivanas! Preciso ir! Largue-me, largue-me!
- Me responda antes quem o enviou e quem enviou esta moldura, lhe disse.
- Não posso, pois não sei.  Nunca me é dito nome de quem envia a encomenda e por que sou enviado. Agora por favor, me deixe ir!
- Me diga ao menos quem é você - pedi esperançoso.
- Eu, meu caro amigo - me respondeu ele acalmando-se e me encarando firmemente nos olhos com uma frieza de olhar e expressão a qual até então eu julgara impossível naquela histriônica figura -, sou um personagem. Porém um personagem que jamais foi criado apenas imaginado por breves segundos na mente de meu criador. E então, como eu vivia me atrasando, ele associou minha figura a de um maldito coelho que é símbolo de rapidez! E eis que jamais saí de sua mente para o papel e de mim jamais se lembrou ele novamente, ficando o coelho com meu lugar em seu livro. Porém, aqui estou. Agora, se fizer o obséquio de me soltar, preciso realmente ir. E dizendo isso chacoalhou o ombro para se soltar e ainda me encarando desapareceu na escuridão do buraco.
- Não se esqueça de fechar o buraco antes que nós partamos, ou se arrependerá! Berrou ele lá de dentro. E então tudo silenciou novamente. Rapidamente e com grande esforço arrastei a pedra, jogando-a novamente em seu lugar, onde caiu emitindo um barulho fofo ao se encaixar na abertura.

Por algum tempo o silêncio ainda imperou por todo o salão até que ouvi o apito soar novamente e então o barulho de um motor a ligar. O resfolegar da máquina fez-se ouvir e logo a vibração de seu corpo em movimento pôde ser sentida por todo o piso. O apito soou mais três vezes, seguidamente, a força do motor aumentou e rapidamente seu barulho sumiu de meus ouvidos.

 Sozinho, novamente, olhei para a moldura largada no chão e peguei-a. Era uma moldura bela, entalhada com volteios e flores em madeira nobre. Grande, deveria medir por volta de um metro e setenta de altura por um metro de largura. Pintada em dourado percebia-se que não fora bem cuidada, além da pintura estar extremamente desgastada, estava toda machucada por ranhuras que em muitos lugares haviam arrancado grandes lascas. Dela pendiam presos pedaços de tela rasgados denunciando que a pintura que um dia ali existira fora arrancada com grande violência.
 Desconcertado com aquela situação atípica, e com a moldura velha e quebrada que me haviam mandado de presente resolvi largá-la novamente no chão para descansar um pouco e poder refletir sobre tudo aquilo. Porém, ao tentar soltá-la, meus dedos não se desgrudaram. Não era possível! - pensei eu. Tentei novamente abrir minhas mãos e nada: meus dedos pareciam colados à moldura. Um desespero tomou conta de mim e comecei a chacoalhá-la violentamente na tentativa de me livrar dela. Agitei-a de um lado para o outro, coloquei-a no chão e pisei em cima puxando minhas mãos e machucando meus dedos na malfadada tentativa - e nada da moldura desgrudar. Após alguns minutos de infrutífera luta, deixei-me cair desolado no chão com a moldura ainda presa. Tentava imaginar alguma forma de soltar minhas mãos daquela maldita moldura sem arrancar meus braços e mãos junto quando ela subitamente desgrudou-se e como que puxada por uma força invisível saiu rolando e batendo contra o chão para longe de mim até que, ao quase sumir de minha vista, parou suspensa no ar, flutuando. Não era possível. Aquilo não podia realmente estar acontecendo. Até onde minha razão e lógica alcançavam nada daquilo tudo era meramente crível. Eu tinha que descobrir o que ocorria. 
Foi quando me levantei e, num lance, me joguei numa corrida desenfreada rumo á moldura: ela não iria escapar de mim daquela maneira!  Tentaria pegá-la de surpresa. Minhas pernas já estavam bambas de tanto correr e meu fôlego faltava quando finalmente a alcancei. Ela estava bem mais longe do que parecia à primeira vista. Talvez tudo naquele lugar estivesse mais longe de mim do que parecia à primeira vista. Recuperando o fôlego olhei para a moldura e notei que os pedaços de tela rasgada começavam a se mover. Não, não era impressão minha. Os pedaços de tela não só estavam se movendo como pareciam crescer e mover-se num sentido bem definido uns em busca dos outros. Os pedaços mexiam-se como serpentes famintas; estendendo-se, alargando-se, unindo-se e formando aos poucos uma só tela. Resquícios de cores que ainda restavam na tela começaram a se revolver, também crescendo, espalhando-se nela, criando novas cores e sombras e tomando forma. Em segundos toda aquela movimentação de cores e tintas criou um rosto muito bem definido nela: o meu.
Estarrecido olhei para aquela pintura que surgiu sem atinar para a razão daquilo tudo. Apoiei-me na moldura perscrutando todos os detalhes do rosto que surgira da pintura. Olhei seus cabelos desgrenhados, seu nariz protuberante, os lábios finos e sarcásticos. Seu olhar assustado e perdido em algo misterioso até para mim emprestava àqueles olhos um desespero que jamais fora dele. Que não podia ser dele. Então a ouvi. Seus lábios movimentaram-se na tela e a voz ecoou salão afora:
- Somos prisioneiros de nós mesmos, condenados à prisão perpétua por culpa de nossa própria fragilidade!
 Aquela frase foi como um soco direto no nariz. Meus sentidos turvaram-se imediatamente e tombei zonzo em direção à moldura. Ao tentar me apoiar nela para não cair, senti uma força indefinida me puxar fortemente em sua direção. Meu rosto afundou-se na tela, seguido de todo o meu corpo. E então, novamente, apenas o silêncio e, com ele, a escuridão.

To be continued...

O CIRCO


Hoje, como em todos os dias tristes de minha vida, chove. 

A chuva molha meus cabelos e mistura-se às minhas lágrimas unindo a elas sua força e ajudando-as a desmanchar minha maquiagem. Invasiva, parece adentrar até mesmo minha alma, como se, pretensiosamente, quisesse lavar de mim toda a minha angústia e dor. 

 Choro em frente ao túmulo de Maria Lúcia. 

Anos! E quando me refiro aos anos, não falo de dois ou três - ou de dez. Mas sim de vinte anos quase completos. E isso remonta apenas ao casamento. Nascemos e crescemos no circo, vivemos toda uma vida juntos e um erro crasso num ensaio do trapézio a tira de minha vida para todo o sempre - porém não consegue tirá-la de dentro de mim.

O tempo desacelera diante de meus olhos. Consigo ver nitidamente cada uma daquelas gotas. A água disforme, moldada pela velocidade da queda atinge o chão com todo o peso que a gravidade lhe empresta. Ora ela amassa alguma erva minúscula que cresce dentre as rachaduras, ora ajuda a afogar algum inseto incauto para então desaparecer dragada pelo solo e, num infinito ciclo, ressurgir novamente na vida de alguma daquelas ervas ou de algum daqueles insetos. O que sobra dela simplesmente sobe de volta aos céus em forma de vapor para algum dia, quando solicitada, cair novamente. É a força incontestável da Natureza que se utiliza da lei da maçã para trazer vida a alguns e tirá-la de outros. Então percebo que tudo gira em torno da maçã. Ouvi dizer que uma mordida nela trouxe o pecado ao mundo. Pois nada mais natural que sua lei continue a tirar a alegria de muitos. A culpa não foi de Maria Lúcia, ou do trapézio, mas sim da maldita maçã. 

Eu sou um palhaço. Mas hoje eu não rio mais, não faço mais piadas.

O tempo volta a correr normalmente. A chuva transforma-se em chuvisco e depois se vai. Levanto-me; pernas bambas – há quanto tempo estaria ajoelhado ali? Um pé na frente do outro instintivamente e logo estou no caminho de casa. Há duas semanas nada mais faço do que visitá-la diariamente. Duas semanas e dois dias desde o seu enterro. Chuto poças d’água, lembro-me de alegrias e tristezas. O namoro, o casamento e todos os sorrisos durante a festa de três dias; então a gravidez, as complicações e a perda do feto seguida da notícia de que jamais poderia engravidar novamente, deixando em nossas vidas uma lacuna que jamais seria preenchida.

Olho para o contorno de sombras no qual a lona do circo se transforma ao anoitecer. Hoje não é dia de espetáculo, as luzes estão todas apagadas. Muitos descansam, outros saíram. Todos ainda estão abalados pela morte dela. Não eu. Eu estou despedaçado. E como um vaso que se quebra e é remendado, jamais me verei intacto novamente.

Vou até nosso trailer. Abro a geladeira e mesmo sem ter fome, miro uma maçã e a pego. Um silêncio estranho toma conta do acampamento. Penso que nada pode ser mais sujo do que esse golpe que a vida me deu. Giro a maçã entre os dedos, estudando-a cuidadosamente e decido não comê-la - ainda. Dirijo-me à lona e entro subindo decididamente a escada que leva ao topo do trapézio. Lá de cima olho para baixo. É o mesmo chão no qual ela faleceu. A escuridão não me deixa enxergá-lo. Não me importo, não preciso da vista para saber aonde quero chegar, todos os meus sentidos sabem que o que desejo no momento está ali embaixo, imóvel, onde sempre esteve. O impassível cúmplice da maçã, e tão insensível quanto. Ela ainda está em minhas mãos. Percebo que a estou apertando fortemente, como se de maneira inconsciente quisesse esmagá-la. Não! Levo-a até a boca e dou uma, duas, três mordidas e assim por diante até que ela desapareça de vez; engulo o talo e todos os caroços, não deixo que nada me escape ao paladar. Ela desce pela garganta com um gosto tão amargo quanto o dos meus dissabores. É quando seguro no trapézio e me lançando num impulso bailo com ele. Vou e venho adquirindo velocidade e força até que, num salto, rodopio no ar. Logo sinto meu corpo perder a velocidade da subida e descer rumo ao mesmo chão que levou Maria Lúcia. A maçã já está morta em mim – como tudo o mais - porém sua lei ainda impera. 

Eu costumava ser um palhaço. Mas a partir de agora, definitivamente, eu não rio mais, não faço mais piadas.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Faces

Entre a solidão e o nada,
 a dor e o desespero;
onde adormecem os sonhos
e despertam os medos –
Achei-me.

Silente, Disperso
Confuso, Inerte -

Achei-me

em não mais que uma sombra,
Um sussurro
Um gemido;
Entre tantos de mim
achei-me:

Perdido

quarta-feira, 27 de abril de 2011

BIS

Sou o grande autor,
de uma peça sem enredo ou personagens


Sou o ator principal,
em um teatro de cortinas cerradas e palco quebrado


sem aplausos


sem platéia


sem comentários.

sábado, 16 de abril de 2011

Aliança


                                                                                  

Há um quê de Nada
em tudo que vejo;
 de um vazio tão negro,
que chega a doer.

É como dia que finda -
e rosa, mais linda,
que deita a morrer

Como beira de praia,
em inverno tão frio.
Sentimento de estio -
o vento e você

Mas de uma levada
                           se acende o desejo;
no esboçar dum sorriso,
no roçar do teu beijo

Como dia que nasce –
 e rosa, mais linda,
que desperta a viver

Então tudo é mar
dragando a razão.
Somos eu e você:
Oceano e Verão.