segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O CIRCO


Hoje, como em todos os dias tristes de minha vida, chove. 

A chuva molha meus cabelos e mistura-se às minhas lágrimas unindo a elas sua força e ajudando-as a desmanchar minha maquiagem. Invasiva, parece adentrar até mesmo minha alma, como se, pretensiosamente, quisesse lavar de mim toda a minha angústia e dor. 

 Choro em frente ao túmulo de Maria Lúcia. 

Anos! E quando me refiro aos anos, não falo de dois ou três - ou de dez. Mas sim de vinte anos quase completos. E isso remonta apenas ao casamento. Nascemos e crescemos no circo, vivemos toda uma vida juntos e um erro crasso num ensaio do trapézio a tira de minha vida para todo o sempre - porém não consegue tirá-la de dentro de mim.

O tempo desacelera diante de meus olhos. Consigo ver nitidamente cada uma daquelas gotas. A água disforme, moldada pela velocidade da queda atinge o chão com todo o peso que a gravidade lhe empresta. Ora ela amassa alguma erva minúscula que cresce dentre as rachaduras, ora ajuda a afogar algum inseto incauto para então desaparecer dragada pelo solo e, num infinito ciclo, ressurgir novamente na vida de alguma daquelas ervas ou de algum daqueles insetos. O que sobra dela simplesmente sobe de volta aos céus em forma de vapor para algum dia, quando solicitada, cair novamente. É a força incontestável da Natureza que se utiliza da lei da maçã para trazer vida a alguns e tirá-la de outros. Então percebo que tudo gira em torno da maçã. Ouvi dizer que uma mordida nela trouxe o pecado ao mundo. Pois nada mais natural que sua lei continue a tirar a alegria de muitos. A culpa não foi de Maria Lúcia, ou do trapézio, mas sim da maldita maçã. 

Eu sou um palhaço. Mas hoje eu não rio mais, não faço mais piadas.

O tempo volta a correr normalmente. A chuva transforma-se em chuvisco e depois se vai. Levanto-me; pernas bambas – há quanto tempo estaria ajoelhado ali? Um pé na frente do outro instintivamente e logo estou no caminho de casa. Há duas semanas nada mais faço do que visitá-la diariamente. Duas semanas e dois dias desde o seu enterro. Chuto poças d’água, lembro-me de alegrias e tristezas. O namoro, o casamento e todos os sorrisos durante a festa de três dias; então a gravidez, as complicações e a perda do feto seguida da notícia de que jamais poderia engravidar novamente, deixando em nossas vidas uma lacuna que jamais seria preenchida.

Olho para o contorno de sombras no qual a lona do circo se transforma ao anoitecer. Hoje não é dia de espetáculo, as luzes estão todas apagadas. Muitos descansam, outros saíram. Todos ainda estão abalados pela morte dela. Não eu. Eu estou despedaçado. E como um vaso que se quebra e é remendado, jamais me verei intacto novamente.

Vou até nosso trailer. Abro a geladeira e mesmo sem ter fome, miro uma maçã e a pego. Um silêncio estranho toma conta do acampamento. Penso que nada pode ser mais sujo do que esse golpe que a vida me deu. Giro a maçã entre os dedos, estudando-a cuidadosamente e decido não comê-la - ainda. Dirijo-me à lona e entro subindo decididamente a escada que leva ao topo do trapézio. Lá de cima olho para baixo. É o mesmo chão no qual ela faleceu. A escuridão não me deixa enxergá-lo. Não me importo, não preciso da vista para saber aonde quero chegar, todos os meus sentidos sabem que o que desejo no momento está ali embaixo, imóvel, onde sempre esteve. O impassível cúmplice da maçã, e tão insensível quanto. Ela ainda está em minhas mãos. Percebo que a estou apertando fortemente, como se de maneira inconsciente quisesse esmagá-la. Não! Levo-a até a boca e dou uma, duas, três mordidas e assim por diante até que ela desapareça de vez; engulo o talo e todos os caroços, não deixo que nada me escape ao paladar. Ela desce pela garganta com um gosto tão amargo quanto o dos meus dissabores. É quando seguro no trapézio e me lançando num impulso bailo com ele. Vou e venho adquirindo velocidade e força até que, num salto, rodopio no ar. Logo sinto meu corpo perder a velocidade da subida e descer rumo ao mesmo chão que levou Maria Lúcia. A maçã já está morta em mim – como tudo o mais - porém sua lei ainda impera. 

Eu costumava ser um palhaço. Mas a partir de agora, definitivamente, eu não rio mais, não faço mais piadas.